Secretária de Cultura de Piraí do Sul esclarece fatos de crianças negras desfilarem vestidas como escravos; MP investigará caso
Matheus de Lara
Piraí do Sul – Vídeo de crianças negras, retratadas como escravas e desfilando usando trapos e correntes de papel nos pulsos e tornozelos, em trecho do desfile cívico realizado em Piraí do Sul, no domingo (18), foi alvo de acusações de racismo. O evento era alusivo as comemorações dos 200 anos de Independência do Brasil, e repercutiu nacionalmente.
Realizado na Avenida Bernardo Barbosa Milléo, o desfile contou com a participação de estudantes de escolas, autoridades, associações, entre outras entidades.
Após repercussão, nesta quarta-feira (21) foi divulgado vídeo de 13 minutos sobre ‘esclarecimentos dos fatos sob a ótica da comunidade’, divulgado nas redes sociais da Prefeitura Municipal de Piraí do Sul. No vídeo, a secretária de Cultura do município, Cinara de Souza Gomes, falou sobre o caso. As crianças em questão, estudam na Escola Municipal Padre de Anchieta. “A escola trouxe para o desfile toda a história política do Brasil representada em seus principais momentos, o descobrimento, o contado com os indígenas, a escravidão africana, a vinda da família real, a independência política, a assinatura da lei áurea com a consequente abolição da escravidão. A escola não trouxe apenas um bloco mostrando apenas a escravidão africana, trouxe de forma contextualizada sem racismo, sem descriminação, sem tom pejorativo, todo o período pré-colonial e colonial brasileiro. O tema escravidão chocou? Não tem como ser diferente, não tem como contar de outra forma, uma história que de fato aconteceu, não podemos negar isso. A escola trouxe a tona o tema racismo, e que o racismo existe em nosso país sim e que tem que ser discutido. Foi um ato simbólico que trouxe essa reflexão de que é necessário repensar sobre a discriminação racial”.
A secretária também descreve que “somos uma cidade pequena do interior do estado, com uma grande parcela da população que se autodeclara negra, com presença de comunidade quilombola”. Cinara também enfatizou que esse tema não esteve presente apenas no desfile cívico, “já esteve presente nos debates promovidos em novembro de 2021 e estará novamente em discussão em novembro […]. Essa polêmica só veio nos mostrar que, a população negra tem longo e ardo caminho até ser devidamente valorizada e respeitada”.
Na sequência foi a vez da diretora, Silvia de Anhaia, e também mãe de aluno explicar sobre os fatos. “A escola buscou retratar a história do nosso Brasil. As professoras buscaram trabalhar o conteúdo em sala de aula, e a gente achou por bem representar essa história nas ruas da nossa cidade. Enquanto diretora, primeiramente assim que a proposta foi lançada entramos em contato com os pais, explicando como seria todo o contexto da história, e também pedimos autorização para que todos tivessem cientes que seus filhos estariam representando o personagem. Tivemos personagens de índios, Pero Vaz de Caminha, Pedro Alvares Cabral e Padre Anchieta. Logo depois, os escravos que foram trazidos para o país, na sequência a família real, e por fim crianças que representaram o Dom Pedro I e Dona Leopoldina. Nesse desfile conseguimos contar a história que era esse o nosso maior desafio, contar a história com poucas cenas e palavras. Porém, existe pessoas que são mal intencionadas, e isso levou a culminância desse momento onde se fala de um ato racista. Eu sendo diretora da escola, uma pessoa da raça negra, sendo racista, não consigo me colocar nessa situação […]”.
Silvia também abordou que seu filho representou os escravos no desfile e diz que não se arrepende. “Ele representou lindamente esse povo que veio para o Brasil, que sofreu muito, e que até hoje sofre e sente na pele as dores que lá no passado nós fomos libertados, e até hoje continuamos sendo escravizados, chicoteados pela sociedade que é preconceituosa, racista e maldosa”.
A professora Angela Hundzinski, filha que descende de escravo, mas que não trabalha na escola, estava no desfile com sua família, incluindo seus sobrinhos que estudam no ensino. “A minha família estava presente nesse desfile, e como vou me ofender com uma escola que está mostrando a nossa história. Eu iria me ofender, se tivesse a família real e não tivesse os negros. Nenhum da minha família se ofendeu com o desfile, pelo contrário, como vamos esconder das nossas crianças um passado se não for lebrado e mostrado, vamos ser esquecidos […]. Eu fico triste de estarem usando esse tema como se fosse um racismo, sendo que é um resgate cultural. Então eu vejo essa polêmica que está tendo um absurdo”. No vídeo, também fala outras três mães de alunos e uma voluntária.
Manifestações
Após a repercussão do caso, a Prefeitura Municipal de Piraí do Sul, Defensoria Pública do Paraná e Ministério Público se pronunciaram sobre o caso.
Em nota divulgada na segunda-feira (19), a prefeitura afirmou que o desfile visava comemorar o Bicentenário da Independência do Brasil, resgatando valores como civismo e desenvolver o sentimento de pertença em toda a população piraiense. Na nota a prefeitura também esclarece que “o município entende que em momento algum o ato ficou caracterizado como ofensa aos negros nem se destinou a qualquer desrespeito à dignidade da pessoa humana. Levando-se em consideração o contexto, tanto do momento do desfile quanto das ações cotidianas da escola, repudia-se qualquer menção ao racismo ou outra forma de preconceito”.
Por outro lado, também em nota, a Defensoria Pública do Paraná (DPE-PR) avaliou a cena como de extrema irresponsabilidade.
“O DPE-PR abriu um procedimento para apurar as circunstâncias do desfile cívico realizado em Piraí do Sul no último domingo. O Núcleo da Cidadania e Direitos Humanos (NUCIDH) e o Núcleo da Infância e Juventude (NUDIJ) abriram procedimento preparatório para, caso necessário, ajuizar uma ação civil pública contra os órgãos responsáveis pelo ato. Os núcleos vão cobrar explicações do município sobre o episódio. Os coordenadores do NUCIDH e do NUDIJ, defensores públicos Antonio Vitor Barbosa de Almeida e Fernando Redede Rodrigues, classificaram o ato de colocar crianças negras no desfile para representarem pessoas escravizadas como de extrema gravidade. “É com preocupação e espanto que o NUCIDH vê a utilização das crianças negras acorrentadas para remeter a fatos históricos escravagistas em pleno desfile cívico sobre a independência do Brasil. Num desfile cívico que celebra a independência do Brasil, deveriam ser exaltadas a cidadania e igualdade, e não o reforço a estereótipos”, afirmou Almeida.
Para Redede, a exposição das crianças no ato é inadmissível. “O estigma que isso pode causar na vida das crianças, na personalidade delas, na história delas é muito grave. Estamos em um mundo de superexposição e isso pode causar futuro sofrimento e dano a essas crianças. É um ato de extrema irresponsabilidade”, afirmou.
A DPE-PR é a instituição responsável pela defesa e promoção dos direitos humanos e da democracia no estado, com orientação jurídica e defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos. Os núcleos também são mecanismos específicos de atuação coletiva da Defensoria voltados ao enfrentamento de questões que representem ameaça à violação de direitos individuais e coletivos”, conclui a Defensoria.
Já o Ministério Público disse que o município acionado vai precisar prestar esclarecimentos sobre a encenação no desfile cívico. A apuração vai ocorrer de forma sigilosa por envolver crianças.
Foto: Divulgação