Da Assessoria
Ponta Grossa – Uma família que reconhece a importância da educação: assim são Angelina Antônio Mhalo Mavundza, Fernando Angelo Xavier Mavundza e Khanyisile Graciete Xavier Mavundza. Os pais, moçambicanos; Khanyisile, a filha, brasileira; os três, alunos da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). No Dia do Vestibulando, comemorado neste sábado (24), a história desta família representa bem aqueles que não desistem até ver o sonho de cursar o ensino superior se transformar em realidade.
Um objetivo: a universidade
Fernando é filósofo, pedagogo e mestrando em Educação pela UEPG; Angelina é teóloga, licenciada e mestre em Matemática pela instituição. Já Khanyisile agora está a caminho de realizar um sonho de infância: aos 17 anos, é aluna do primeiro ano do curso de Medicina, classificada em primeiro lugar pelo Processo Seletivo Seriado de 2024, também pela Universidade. Contudo, o caminho até o ensino superior não foi tão simples.
A história da família Mavundza permeia diversos países, culturas e línguas. Antes de criarem raízes em Ponta Grossa, Fernando e Angelina fugiram de uma guerra civil em Moçambique e se conheceram no país vizinho, Essuatíni (antes conhecida como Suazilândia). Lá, puderam iniciar os estudos e definir um objetivo claro: ingressar no ensino superior.
Em Ponta Grossa, os dois puderam concretizar o objetivo. O sonho partiu de um desejo profundo de modificar a própria realidade e a realidade moçambicana. “Eu percebia que no meu país de origem havia muita carência – de médicos, professores, engenheiros, enfermeiros…”, relata Fernando. “Ao longo da minha vida, sempre ouvi e acredito nisso: a educação é a chave para mudar a realidade”.
Com um discurso repleto de memórias e desejos de um futuro melhor, Fernando afirma: antes de apontar o caminho, é preciso conhecê-lo. Para ele, a educação é uma forma de garantir dignidade: “preciso estudar para poder manter a família, para poder dizer ‘olha, não ganhei dinheiro na minha vida, mas ganhei formação’”, declara.
Aos 69 anos, ele segue estudando, mas diz encarar os estudos como necessidade. “Na minha idade, eu não deveria estar mais na sala de aula. Mas fazer o quê? Não tenho escolha. Tenho que estudar.” Para ele, os cabelos brancos representam maturidade e impõem respeito. “Falar de idade para mim não é vergonha, porque isso indica que eu sou adulto. Então assumo as características de um adulto: ser honesto, sincero, transparente e agir com maturidade”, afirma.
Angelina também ingressou no ensino superior com uma idade diferente do padrão dos seus colegas. Hoje, com 59 anos, comenta emocionada que conseguiu se formar. “Foi um sonho realizado, nem sei como descrever”. O casal embarcou para o Brasil em 2003 e cumpriu uma longa trajetória até a Universidade.
Caminhos e escolhas
Nascida na zona rural de Moçambique, Angelina foi a primeira pessoa da família a concluir o ensino superior. “Na minha região, as meninas eram criadas para aprender as atividades domésticas, esperar o pretendente e se casar. Mas eu não queria ser essa mulher. Queria mudar a situação na minha família”, recorda. “Eu não sei o que tinha na cabeça de querer estudar, mesmo vindo de um ambiente que não era favorável.”
Ao insistir na ideia, Angelina passou a viver com um tio em Maputo, capital de Moçambique, onde começou o ensino formal aos 11 anos. “Comecei atrasada, e quando terminei a quinta série já estava com 16 anos. Era nova demais para cursar um supletivo e velha demais para continuar na escola, precisei parar. Não tinha como voltar, isso me doía muito”.
Apesar da frustração, Angelina seguiu confiante e conseguiu uma nova oportunidade: frequentar o ensino médio no país vizinho, Essuatíni. “Um pastor de uma igreja evangélica tinha essa escola bíblica, mas era em outro país. Ele teve a iniciativa de juntar alguns jovens para conseguir estudar lá”.
Como ainda era menor de idade, Angelina precisou da autorização dos pais para viajar. “Meu pai hesitava, achava que eu voltaria velha e não me casaria mais. Mas depois de muita conversa com minha mãe, ele aceitou. Era a minha chance”. Em Essuatíni, ela concluiu o Ensino Médio e conheceu Fernando, os dois se casaram e, juntos, deram início à busca por uma formação superior.
Durante meses, Fernando e Angelina procuraram contatos, indicações e inscrições em programas de bolsas de estudos. Com a ajuda de um casal de amigos, conquistaram uma vaga para estudar em Ponta Grossa. “Foi a primeira oportunidade que se abriu e nós conseguimos vir para cá”, conta Angelina.
Um hiato
Há 22 anos, a trajetória do casal no Brasil começava com os cursos de Teologia e Filosofia. Galgando caminhos ao longo do tempo, a vontade de permanecer na Universidade aprendendo outros assuntos cresceu. Porém, um hiato fez-se necessário: nasceu Khanyisile, filha do casal, e o visto da família precisou ser renovado, uma vez que as primeiras graduações de ambos chegaram ao fim.
Ao longo dessas mais de duas décadas no Brasil, Fernando e Angelina estiveram uma vez em Moçambique. O objetivo era que as famílias conhecessem a pequena Khanyisile e eles pudessem aguardar o tempo necessário para renovar o visto. Durante dois anos, foram professores em colégios internacionais e viveram, mais uma vez, a rotina em seu país de origem.
Nascido no Zimbábue e criado em Moçambique, Fernando explica que a divisão entre os países não separou os povos. “Antes da demarcação de fronteira, que foi feita arbitrariamente pelos colonos, era um só povo. Viviam do mesmo jeito, tinham a mesma cultura, mesma língua, todos os hábitos iguais, tanto que transitavam para um lado e para o outro sem essa delimitação de fronteira”, explica.
Fernando critica os estereótipos difundidos sobre a África. Diz que não se deve confiar apenas no que a imprensa ocidental divulga, pois há uma tentativa constante de menosprezar suas culturas. “Não fique ouvindo isso. Vão para lá e tenham uma experiência própria que vocês vão mudar de ideia, vão ter outra noção”, aconselha. “Porque a vida lá é muito bonita. É autêntica. Não há hipocrisia”.
O tempo em Moçambique foi carregado de afeto, como relatam Fernando e Angelina. Ainda assim, a vontade de continuar a formação acadêmica falou mais alto, e eles optaram por se despedir da família e retornar ao Brasil. Hoje, celebram a vida acadêmica na UEPG.
O futuro
A família se orgulha da trajetória construída em Ponta Grossa e, ainda assim, Angelina e Fernando não descartam a possibilidade de voltar para Moçambique. Desta vez, para encontrar, com novos olhos, um país bem diferente daquele que deixaram, anos atrás. “A vida não está parada”, diz Fernando, “tudo evoluiu, mudou. Eu não posso dizer que sou o mesmo”, comenta, “minhas concepções de educação são outras e eu sou outra pessoa”.
Angelina, emocionada, revela: ela ainda quer fazer a diferença. “A gente tem essa vontade de contribuir mesmo, especificamente na área de educação. É nessa área que a gente pensa que é mais importante para a vida de uma criança, para essa nova geração. Essa vontade está no meu coração e tenho esperança que um dia vamos voltar e realizar esse sonho”, explica.
Khanyisile ouve atentamente os relatos dos pais. Em uma entrevista numa manhã ensolarada e fria – típica de outono – perto do bloco M do campus Uvaranas, ela comenta que ainda não sabe se gostaria de ficar no Brasil ou voltar para Moçambique. “Independentemente do lugar onde eu esteja, o que importa é que eu gostaria de ser uma médica realmente boa, que faça a diferença na vida das pessoas”, confessa. “Eu espero poder tratar as pessoas da melhor maneira possível”.
Depois da conversa emocionada e cheia de recordações, a família Mavundza se despede com a urgência de quem não pode se atrasar para a programação do dia: caminham, juntos, pela Central de Salas, os três estudantes da Universidade Estadual de Ponta Grossa.